Por JORGE BANDEIRA
Sobre a Obra ESPETÁCULO - INSTALAÇÃO CHICO O CORPO EM CORES E SONS.
Tudo começou
naquela segunda vez com a chegada da mulher de cabelos vermelhos, esperando em
vão por um “boa noite, senhor?”. Uma faceta de
Chico Buarque já estava ali antes de pulsar na casa número 3 da Travessa B.
Coisas do Chico. Logo em seguida escuto com atenção ao relato sensível de meu
amigo José Batista sobre o encontro do ninho do beija-flor. Lindo isso. O
aparelho de som já tocava as músicas de espera. Odacy e seu parceiro de cena de
Ii Ocre também chegam. A Francis pensa até que perdeu a chave. Michelle Andrews
me abraça calorosamente. Adoro o abraço de Michelle. A gente conspira para ser
feliz. Isso é muito bom. Eu posso nem concordar com tudo que ela pensa, mas que
a tenho em consideração pelo fazer e ousar. Isso basta. Transformar uma casa
numa usina de arte. Isso para mim já basta. Isso é estar na cena. Isso é fazer
a cena viver. É ajudar a cena. Alerto, aqui, que escrevo sobre mim mesmo, e
estas impressões são irrefutavelmente intransferíveis. Talvez alguns se
sensibilizem. Talvez. Se não, não. A Casa está lá, pintada por fora e batizada
de Chico Buarque por dentro. Ali acontece a música de Chico ao vivo e a cores,
em movimentos e coreografias com os pés no contemporâneo. Eu me pergunto,
relembrando o antigo aforismo: Nós é que fazemos a casa ou é a casa que
constrói a gente? Seguramente a segunda assertiva é a verdadeira aqui. Esta é a
casa buarqueana, feita a partir da visão poética em forma de dança de Francis
Baiardi e por sua Contem Dança Cia. Eis a obra Chico: o corpo em cores e sons e
suas potencialidades. Sua força motriz de dinâmicas onde até a aparente inércia
dos corpos transformam o nosso interior como um telhado de casa caiado. As
mulheres de Chico estão habitando a Casa, junto estão seus temperamentos, suas
relações e suas vivências, amores, paixões, decepções, as ligações perigosas
aos olhos da sociedade moralmente falsa e conservadora, seus cotidianos e seus
limites. O Ambiente interno 1 é a sala com a TV fora de sintonia, Poltergeist
de Chico, com suas ligações poéticas no chão e os filamentos que interligam
casa e as dependências desta casa cheias de poesia e música. A redundância aqui
também serve para comunicar que as dependências da casa estão ligadas pelos
veios da dependência, suas cores vibram e pulsam em nossas visões enquanto
estas mulheres transitam nesta Casa inconsútil. A Cozinha é o Ambiente 2, onde
a mesa está feito esta gaiola onde a mulher habita um vale da culinária dando
prazer gustativo ao paladar de seu homem, uma prisão com cheiro de cebola. O
corredor se apresenta, aproximando-nos de outros 2 ambientes, um deles o quarto
carmesim onde o amor se arvora pelo mesmo fruto de Eva. O local onde os sapatos
mórbidos são retirados e colocados por esta mulher indecisa pelas convicções do
amor, este amor que em Chico da Contém nunca se completa, interrompe-se
costumeiramente no cotidiano desta Casa. As pausas em cada música são achados
bem elaborados, assim como a iluminação, tudo possui uma forma orgânica pelo
trabalho de José Batista e sua paisagem visual, seus vasos comunicantes que nos
levam a percorrer os cômodos da Casa de Chico, esta casa em constante
construção. O político de Chico se apaga aqui, entramos no plano poético onde
as mulheres de Chico imperam em seu matriarcado limitado pelo vigor de suas
paixões. A iluminação contempla o chão, a lateralidade o teto desta Casa, num
curioso jogo de transferência de sensações cromáticas concebidas aqui por Luis
Alberto. As músicas, selecionadas por Fabíola Bessa e Naty Veiga, formam um
labirinto com saída certa, nos colocam em direções exatas de cada plano e
sequencia coreográfica. A pele está muito perto nas transparências deste
figurino, pensado por Francis Baiardi, ela escorre pelas vestes de ninfas das
intérpretes colaboradoras Alessany Negreiros, Amanda Pinto, Ana Carolina Souza,
Fabíola Bessa e Huana Viana, todas executando com esmero e consciência de
movimentos, dando personalidade a cada faceta destas mulheres de Chico. As
estações do amor são aqui quadros e quartos que oscilam entre silêncios e
espasmos. Tudo comunica. As contorções corporais vibram também dentro de nós, o
corpo é testemunha do que faz o coração. A sensualidade entra em cena, junto ao
gozo e ao prazer, mas aqui se percebe que estamos falando do efêmero, dos
sentimentos que passam de forma ávida, vertiginosa. O tempo de um gozo. Coito
Buarque. A linda frase que se escuta é a síntese desta obra: Meu corpo é como
sua Casa! As vozes deste cotidiano em coros sonantes e dissonantes, vozes em
ecos intermitentes, oriundos do sofá dos amores perdidos. Vozes que se arrastam
e nos puxam aos cômodos da Casa através dos vasos comunicantes, onde os corpos
estão executando movimentos em níveis diferenciados, dos planos alto ao baixo,
e o público faz seu trânsito pela casa, costurando caminhos que vão se abrindo,
que avançam e recuam, perfazendo caminhos agora já familiares, pois feitos de
nossos rastros de vida. Tentar por ordem na casa, arrumar uma casa que pulsa na
batida de um coração, esta é tarefa difícil aos que amam. Amor é desordem! A
transferência deste sentimento é feito neste Chico de forma sensorial total,
onde até o olfato nos denuncia que o choro forçado pode ser uma dissimulação na
vida de uma mulher que está prisioneira de sua cozinha imaginária. A faca corta
as camadas da vida (da cebola), numa receita amarga para alguns, mas
necessárias para outros. As coisas não podem parar, elas vivem como janelas que
se abrem para arejar uma casa. No corredor das ninfas até o samba de Chico tem
vez, o corredor de Carolina e Bárbara, que os olhos fechados das mulheres são
alegorias deste sentir o amor e as paixões, a austeridade de suas ações, suas
entregas a alegria, ao vinho, este desregramento de seus corações. A sequência
de Tatuagem e do amor de Lesbos é algo muito etéreo, é como se o calor da cama
carmesim nos contaminasse o corpo, onde o respirar de um gozo estivesse perto
de eclodir ao nosso lado, em nossa frente, em nosso interior. Uma cena muito
bela mesmo. Próximo do final da jornada nesta Casa, a emblemática cena da
mulher nua e desamparada no banheiro, como se fosse uma inquilina da Casa do
amor que foi despejada por não pagar o preço alto por ter amada tanto. O gotejar
da água denunciava desde o principio a solicitude. O preço por habitar esta
Casa de Chico, algumas vezes, é a necessária solidão.
*Jorge
Bandeira é Patafísico. Pai da Carolina do Chico e do Gonzagão.
Manaus,
25 de agosto de 2014.
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